sábado, 29 de junho de 2013

Um fado qualquer


Um fado qualquer é uma composição do coimbrense JP Simões. Ela foi lançada em disco em 2005 (“Exílio”, grupo Quinteto Tati). Numa irresponsabilidade terminológica (nada mais eu do que isto), julgo pertinente chamar Um fado qualquer de um fado pós-moderno. Bom, isto se tomarmos como critério um certo encadeamento cronológico da expressão fadista, e observarmos que o período moderno do fado coincide, necessariamente, com a sua consequente inserção e expansão na indústria cultural portuguesa dos anos 30 e 40 do século passado, cujos meios mediáticos de massa eram o teatro, o rádio e o cinema. Não é nenhum erro, também, dizer que a época moderna do fado coincide com o aparecimento e amadurecimento artístico da célebre fadista Amália Rodrigues, que teve ao longo da sua carreira seu nome fortemente associado ao fado, assim como, por exemplo, Elvis teve o seu nome associado ao rock and roll. Já o suposto período antigo ou tradicional do fado localiza-se em meados do século XIX, tendo como personagem mítico a figura de Maria Severa Onofriana, fadista que habitava o tradicional bairro lisboeta Mouraria e que muitos apontam como “fundadora” do fado.

Paulo Valverde, estudioso das expressões do fado tradicional e moderno, observou, no ensaio O fado é o coração: o corpo, as emoções e a performance no fado, que “…o universo do fado se apropriou de um conjunto de concepções emocionais que tenderam a ser suprimidas pelo advento do complexo emocional burguês”. É amparado nesta constatação de Valverde que eu entendo que este fado pós-moderno composto por JP Simões parece situar a sua problemática neste entremeio conflituoso entre a exaltação emocional dos fadistas (tradicionais e modernos) e o “complexo emocional burguês”, hoje em dia tão amplamente compartilhado e vivido.

Dialogando, assim, com a tradição do fado ao mesmo tempo em que incorpora outros discursos alheios ao universo temático deste género, JP Simões alarga, ou antes, desfaz algumas fronteiras entre objetos e temas específicos do fado como género tradicional/moderno e incorpora para esta forma de discurso musical e poético situações emocionais condizentes com o tempo-histórico contemporâneo.

Não soa como degredo à tradição, uma vez que há um conhecido fado de Frederico de Britto, com um emblemático título de Biografia do fado, que destaca por excelência o caráter abrangente e amalgamador do fado: “Naquela vida agitada / Ele (o fado) que veio do nada / Não sendo nada era tudo”. Ser ao mesmo tempo tudo e nada permite que o fado siga se reinventando uma vez que assim desejem seus admiradores e artistas.


Com a disposição da letra de Um fado qualquer, apontarei principalmente como este fado diverge da tradição fadista ao incorporar o “complexo emocional burguês” observado por Paulo Valverde.

E enfim, estava tudo bem ou coisa assim:
o apartamento confortável, bom design, um amor normal e tal.

Nos dois primeiros versos, Simões já nos diz sobre a aparente normalidade e bem-estar deste homem burguês retratado na canção. A posse de um apartamento “confortável”, com “bom design”, e também o “amor normal”. É curioso observar a disposição sequencial do “apartamento confortável” e de um suposto relacionamento amoroso estável, como se estes quesitos materiais e sentimentais se completassem ou se encaixassem.

Em vão procurou razões de exaltação e voltou para casa muito, muito devagar, como quem não quer chegar.
Pensou nos tempos que em festas e dramas, bebeu pelos becos, dançou nas vielas, pôs todos os homens a cantar.

Já estes versos destacam o carácter instável deste homem, à revelia dos primeiros versos, e que a sua completude existencial, se é que ela possa existir, não está garantida em absoluto com a posse de bens materiais ou de um “amor normal”. O personagem da canção também está ciente de que todos os excessos e desregulações são prejudiciais ao seu ideal emocional, porque, apesar de desejar os excessos e as desregulações, refuta-os, mesmo que muito hesitante: voltou para casa muito, muito devagar, como quem não quer chegar.

Há, em relação a este confronto entre o ideal emocional burguês e sentimentos exacerbados, um trecho importe do ensaio já citado de Paulo Valverde que vale destacar: “…como já notava Mary Douglas, todos os fenómenos de circulação entre o interior e o exterior do corpo são cuidadosamente vigiados. Todas as desregulações, e sobretudo os excessos, podem colocar em causa a qualidade da pessoa e, em particular, a sua masculinidade. É, obviamente, o caso da expressão das emoções e de todas as secreções como o suor e as lágrimas”.

 Mas hoje à noite, se um fado qualquer soar estafado na sala de estar, talvez se aguente sem nada dizer, enchendo a boca durante o jantar.

Os versos finais reiteram que “atualmente” (na atualidade de dentro da canção) o personagem está aparentemente reconciliado com a sua “normalidade”. Assim, mesmo que um “fado qualquer” soe e lhe faça retomar por via da memória emoções exacerbadas e dramáticas, que naturalmente contrastam com a estabilidade emocional buscada pela burguesia, ele “talvez” poderá conseguir ignorar estes momentos de oscilação emocional por meio da disciplina e/ou da alienação, como o verso enchendo a boca durante o jantar permite inferir, uma vez que as necessidades “nutricionais”  (por falta de palavra melhor) podem “abafar” ou “calar” necessidades do espírito.

Cabe destacar também, agora já fora do eixo discursivo e temático de “Um fado qualquer”, a presença e ausência de instrumentação que se tornou característica do fado tradicional e moderno. É evidente a ausência da guitarra portuguesa, por si só sinônimo deste género, com o que podemos conjecturar possíveis motivos desta ausência. Desejava o compositor não tornar o seu fado dotado de característica tradicional tão marcante? É possível que sim, uma vez que desta maneira seria condizente com mesma motivação que o fez compor um fado problematizando sob um paradigma diferente à questão da emoção. Assim, no lugar da guitarra portuguesa a pontuar a melodia da canção, há uma suave e lânguida flauta doce. No entanto, como não poderia de ser, há características que podem ser vinculadas à tradição do fado, especialmente o acompanhamento da guitarra e a presença de arranjos orquestrados, presentes sobretudo nos fados modernos de Amália Rodrigues e seus pares.

sábado, 25 de agosto de 2012

Canção como fenômeno e produto culturais


Tem um amigo meu que sustenta a opinião de que o valor de uma canção está em sua capacidade de inserção na cultura popular. Segundo ele, quanto mais enraizada e até mesmo “anônima” a canção for, tanto melhor. Eu, entretanto, discordo. Não acredito que a popularidade seja o melhor critério para julgar possíveis qualidades e defeitos de uma canção. Aliás, o fenômeno da popularidade é algo que eu julgo controverso e sobre o qual ainda não tenho nenhuma opinião definida, de modo que, ao conversar sobre o assunto, a única contribuição que eu trago é esta: que a popularidade é um fenômeno em si que não agrega necessariamente valor qualitativo a uma obra de arte de qualquer natureza.

Mas voltando à afirmativa do meu amigo, umas das conclusões que eu posso tirar dela, e sobre a qual acho que reside a fragilidade da sua opinião, é que ele mantém um pensamento pré-capitalista sobre a canção. Por que pré-capitalista? Explico. Porque ele ainda pensa a canção contemporânea como fenômeno cultural e não como produto cultural. Não sei se estes termos (fenômeno e produto) correspondem à terminologia dos estudos culturais que se debruçam sobre a questão da música popular. Mas creio que esta distinção entre fenômeno e produto possa ser facilmente compreendida. Ao passo que no fenômeno se agregam as expressões culturais anônimas e conjuntas de um povo (por exemplo, o samba-de-roda da região do recôncavo baiano), o produto cultural nasce sob a égide de um indivíduo que, embora manipule este material cultural anônimo e comum, subtrai dele sua expressão particular e, sobretudo, o comercializa como seu. E aqui entra o complicado tema dos direitos autorais, que poderei futuramente tratar num texto à parte.

Caetano Veloso, em um trecho do programa Samba na Gamboa, o qual fiz questão de anexar ao post, fala exatamente sobre esta distinção entre fenômeno e produto culturais. Ao explicar ao entrevistador como compôs sua primeira música gravada (É de manhã, de 1963, Caetano fala de como se apropriou de partes da letra da canção tradicional para compor o seu samba “em tom menor”. É uma fala curiosa porque retrata exatamente a transição entre o estágio pré-canção moderna (ou, canção tradicional) para o que hoje entendemos como canção. Ele termina o trecho do vídeo dizendo que mesmo sendo “outra coisa”, a sua canção e a cantiga tradicional são “a mesma coisa”. Eu diria que mesmo vindo da “mesma coisa”, É de manhã e a cantiga popular não são a mesma “coisa” e não podem ser medidas sob o mesmo parâmetro.